sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Análise da cena "O SAPATEIRO"

O SAPATEIRO
O SAPATEIRO (JOÃO ANTÃO)
Quando o Sapateiro roga ao Anjo que o acolha na barca, este objecta-lhe: A cárrega t’embaraça[v. 347]. Mais adiante, esclarece um pouco mais o seu pensamento, quando, referindo-se às formas, adverte o Sapateiro: Se tu viveras dereito, / elas foram cá escusadas.” [vv. 358-359]. Para interpretar convenientemente estes dois passos, só vislumbramos uma solução: as formas tinham sido compradas com o dinheiro que o Sapateiro roubara aos seus fregueses e eram como que a materialização dos seus pecados. Se esta interpretação estiver certa, o dramaturgo não considera as formas só como um elemento distintivo e caracterizador de tipo, mas também como objectos que o Sapateiro fora obrigado a levar para o seu julgamento como provas de acusação.
Mestre Gil apresenta um sapateiro, carregado de formas, acusado pelo Diabo de roubar o povo. O Sapateiro não nega o facto e começa a citar, em sua defesa, o cumprimento de preceitos religiosos: faleceu confessado e comungado, ouviu missas, ofereceu donativos à Igreja e assistiu às horas de finados. É o Diabo quem o elucida que tudo isso nada abona em sua defesa, uma vez que roubava. Com toda esta cena, procurou o autor incutir no espectador esta doutrina: os preceitos devotos (ouvir missa, confessar-se, comungar, etc.) só ajudam os que levam uma vida verdadeiramente honesta. É, portanto, mais uma cena moralista de carácter religioso do que a condenação de um Sapateiro, acusado de roubar o povo. Aliás, em muitos outros passos, Mestre Gil defende este ponto de vista: ser-se religioso consiste mais em actuar com espírito evangélico do que assistir ou cumprir os actos externos do culto.
Mário Fiúza, in op. cit.
(extraído do manual escolar Com todas as letras - 9º ano, da Porto Editora)

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