sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Análise da cena "O PARVO"


O PARVO
O PARVO (JOANE)
Os parvos têm, no teatro vicentino, uma função cómica, ocasionada pelos disparates que proferem. Assim acontece neste auto, embora, em certos passos, o Parvo se junte às personagens sobrenaturais para criticar os que pretendem embarcar e sirva,  outras vezes, de comentador.
Evidentemente que, nos termos desarticulados e ilógicos, ditos pelos parvos, há, por vezes, muito que reflectir e analisar. Neste auto, isso acontece com os vv. 251 a 255, dissecados por Óscar Lopes e, sobretudo, com a célebre resposta ao Anjo: “... Samica alguém:” (ed. de 1518) ou Não sou ninguém” (ed. de 1562) que tem sido comentada por variadíssimos autores. (…)
A decisão do Anjo de acolher o Parvo, na sua barca, está na lógica da doutrina católica: não pode ser responsabilizado pelos seus actos quem nasceu irresponsável. É o que o Anjo exprime muito sinteticamente com a palavra simpreza [v. 302]. Simplesmente, o Anjo não lhe ordena que embarque imediatamente mas, pelo contrário, manda-o aguardar no cais os futuros companheiros (espera entanto per i, v. 304), transformando-o assim, no dizer de Stephen Reckert, no “representante alegórico da salvação adiada”. Mas, no momento próprio, os quatro Cavaleiros da Ordem de Cristo, seus companheiros, embarcam triunfalmente, deixando o Parvo no cais. A verdade é que quando chega a barca seguinte, já ele lá não estava...
Mário Fiúza, op. cit.
“O PARVO”
O mais óbvio recurso vicentino de nonsense é o Parvo, genealogicamente afim ao Sot medievo francês, originário da festa entrudesca das Crianças ou Inocentes que se insinuou no calendário litúrgico, e ainda ao Narr de festividades germânicas similares – mas adaptado a uma função mais específica.
O papel que desempenha no Auto da Barca do Inferno reconhece-se bem: exprime a candura dos pobres de espírito na sua agressividade instintiva e injuriosa contra o Diabo e os pecadores orgulhosos, e isso ressalta da bela réplica à pergunta de identificação que lhe é feita pelo Anjo: – Quem és tu?Não sou ninguém. Mas o que mais nos interessa agora fica para além da vitalidade agressiva dos insultos ou pulhas do Parvo, onde caoticamente se atropelam as imagens primárias e mais enérgicas da torpeza física ou moral; fica em coisas como a resposta ao convite de entrar na Barca Infernal: De pulo ou de voo? / Oh pesar de meu avô / Soma vim adoecer, / e fui má hora morrer, / e nela para mi só. Repare-se, por um lado, que o simples acto de embarcar pela prancha foi absurdamente posto fora de questão: o Parvo encara a hipótese de embarcar por meio de um voo como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Mas, sobretudo, repare-se nisto: ele fala na hora da sua própria morte com o espanto existencial de quem a sentiu na sua singularidade de morte para si só. É ou não verdade que atingimos desta feita o cândido e autêntico absurdo das coisas tais como são, e não são?(…)
Do Parvo puro e simples é muitas vezes difícil distinguir, funcionalmente, outros tipos vicentinos mais ou menos inocentes, como crianças, Pastores, Lavradores ou Vilãos. Entre o Parvo e o Menino, ambos perfeitamente irresponsáveis, a identidade funcional é quase completa: com excepção da linguagem desbragada que, no Auto da Barca do Inferno, dele faz um advogado de acusação paralelo ao Diabo mas nomeado pelo Céu, o Parvo deixa-se substituir pelo Menino como personificação da inocência no auto dos condenados ao Purgatório. 
Óscar Lopes, Ler e Depois – Crítica e Interpretação literária / 1, Ed. Inova, 1969

(extraído do manual escolar Com todas as letras - 9º ano, da Porto Editora)

Sem comentários:

Enviar um comentário