sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Análise da cena: "O FIDALGO"


O FIDALGO
O FIDALGO (D. ANRIQUE)
Gil Vicente apresenta o Fidalgo com toda a sua vaidade e presunção, “fumoso” [v. 99], ricamente vestido e seguido de um pajem que lhe soerguia a cauda do manto e lhe transportava uma cadeira de espaldas. Habituado a gozar de privilégios especiais, o Fidalgo nem sequer pensa que poderá ir para o Inferno. Assim, para justificar o seu direito a entrar na barca celestial, apresenta apenas ao Anjo, como único argumento, a sua condição social: Sou fidalgo de solar / é bem que me recolhais[vv. 80-81].
A sua altivez e jactância levam-no a exigir que todos o tratem por “Vossa Senhoria” de acordo com os seus pergaminhos nobiliárquicos. Por o Anjo lhe ter dito uma frase que ele considerou pouco cortês (Pera vossa fantesia / mui estreita é esta barca.”) [vv. 86-87], o Fidalgo reage logo violentamente: Pera senhor de tal marca / não há aqui mais cortesia?[vv. 88-89]. Mas o Diabo, momentos antes, tratara-o por tu nos vv. 45-49, sem qualquer reacção da parte do Fidalgo. Porquê? Certamente porque este ficou tão espantado com a revelação e acusação do Diabo que nem teve presença de espírito para o meter na ordem. Aliás é o próprio Diabo quem, passado este breve momento escarninho e zombeteiro, passa prontamente para o tratamento cerimonioso, depois de um verso de transição: Embarcai! Hou! Embarcai[v. 50]. Mas, na cena seguinte, depois de ter sido humilhado e condenado, vemos o Fidalgo tão abatido e deprimido que, quando o Onzeneiro o trata por vossa senhoria [v. 241], o Fidalgo já reage de modo inverso: Dá ò demo a cortesia!” [v. 242]. Mas, nessa altura, já não era um fidalgo mas um pobre condenado ao Inferno; o próprio Diabo ameaça espancá-lo: Dar-vos-ei tanta pancada / Com um remo, que reneguês![vv. 246-247].
Ao Fidalgo parece-lhe a barca infernal um “cortiço” [v. 31], isto é, uma barca muito ordinária e reles para transportar um nobre tão poderoso e importante como ele. Mas o Diabo e o Anjo formulam as suas críticas, que se podem resumir assim: que ele vivera a seu prazer [v. 47], isto é, que fizera tudo quanto quisera, que se entregara aos prazeres, fora tirano e, consequentemente, desprezara os pequenos [v. 103], ou seja, os elementos do povo. Para demonstrar que ele vivera a seu prazer, analisa Gil Vicente a vida sentimental do Fidalgo, repartida entre duas mulheres: a esposa e a amante. Mas o que o Fidalgo ignora e que o dramaturgo denuncia, para caracterizar melhor a sociedade do seu tempo, é que tanto uma como a outra lhe eram infiéis e tinha cada uma delas o seu amante. Não se trata, portanto, de um pormenor secundário mas de um elemento essencial para a caracterização do tipo e da sociedade em que estava inserido.
Mas Gil Vicente não condena só aquele aristocrata mas todos os seus antepassados, como afirma expressamente o Diabo quando informa o Fidalgo de que passará para o Inferno assim como passou vosso pai[v. 53], isto é, o autor generaliza e condena a nobreza como classe social.
O criado ou pajem que acompanha o Fidalgo não entra em nenhuma das barcas. Porquê? Evidentemente que não representa ali um tipo, uma alma de um defunto, mas um simples elemento caracterizador e distintivo, tratado a nível de objecto, que o dramaturgo risca do palco assim que deixa de ser necessário. Mas a sua função simbólica é deveras importante na medida em que representa um elemento do povo, a principal vítima da opressão da nobreza que, manifestamente, não poderia acompanhar o Fidalgo na sua viagem para o Inferno.
 Mário Fiúza, op. cit.
(extraído do manual escolar Com todas as letras - 9º ano, da Porto Editora)

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