sábado, 20 de novembro de 2010

Análise da cena "O JUDEU"


O Judeu
O JUDEU (SEMAH FARÁ?)
Gil Vicente giza o tipo do judeu, exagerando sobretudo dois traços: o apego à sua religião, simbolizado no bode expiatório que ele não quer largar, e o seu proverbial amor ao dinheiro, expresso nas moedas com que tenta subornar o barqueiro. O transporte do bode redunda em cena cómica quando o Diabo se recusa a conduzi-lo na barca e, mais tarde, resolve levar ambos a reboque.
Este pormenor de o Diabo não ter permitido a entrada do Judeu na sua barca é muito significativo: marginaliza de tal modo o Judeu que o coloca num plano inferior ao dos restantes condenados ao Inferno. O próprio Enforcado tem licença para embarcar. Até o Parvo troca o seu papel de comentador pelo de acusador e culpa o Judeu de profanar sepulturas cristãs e de comer carne em dia de jejum.
Evidentemente que o retrato da sociedade quinhentista ficaria incompleto se, no auto, não figurasse um judeu. Apesar de, na carta dirigida a D. João III e nalguns passos da sua obra, termos provas de que o nosso dramaturgo não concordava com a perseguição movida aos judeus e cristãos-novos, a verdade é que, como cristão-velho, dirige, na sua mesma obra, ásperas censuras ao judaísmo em geral.
Stephan Reckert informa-nos que o judeu não se aproxima da barca da Glória “quiçá por ter um crucifixo na vela, e na proa, verosimilmente, uma imagem de Nossa Senhora”. O estudo dos rostos das edições quinhentistas, seiscentistas e setecentistas, onde nos aparecem as barcas desenhadas, não autoriza tal suposição. Gil Vicente procura demonstrar, nesta cena, que o apego do Judeu à sua religião era tão forte que, nem mesmo depois de morto e com a verdade à vista, abandonava as suas ideias.
Mário Fiúza, in op. cit.
(extraído do manual escolar Com todas as letras - 9º ano, da Porto Editora)

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